quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Corre
Corre, criança

Corre 
dentro do meu peito
Rufa os tambores do meu coração
Canta nele a sua alegria acesa
Dança nesta terra porosa que sou
Faz desse corpo seu instrumento

Corre 
Corre, criança

Em direção ao mar
Na crina do vento
Levada pelas águas 
que flutuam no horizonte
que já mora no seu olhar

Venta
Como faz o ar
Como faz o sopro 
que sai desta boca
em forma de palavra

Canta
a maravilha do mundo
com as suas palavras-flecha
Sonha
o destino do fogo
que incendeia seus pés e

Corre
Corre, criança

Pois chegou a hora
A brava hora
de voar em vermelho
Como fazem os pássaros
quando o sol detrás da montanha
diz que é tempo de voltar para casa

domingo, 6 de dezembro de 2020

rios ou ramos ou raízes
espalham 
sob a terra, sobre o ar
sendas, sulcos, rumos 

ritos ou restos ou rostos
esquecidos 
nas sobras da mesa
nas sombras dos fumos 

rastros ou ratos ou ruínas
escapam
das frestas, das arestas
do pó rente às brechas

da vida permeando em festa
os cantos, os contos, os cântaros
como rios ou ramos ou raízes...

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

aos 18
descubro Radiohead, mas ao ouvir Creep
é como se eu fosse catapultada de volta
aos 13
aquele sofrimento brotando alienígena do meu íntimo
a primeira menstruação manchando a infância
eu sou um monstro, menos, eu sou um feto escroto
é o que escrevo no meu diário
aos 14
quando assito ao show do Roger Waters
e minha percepção de realidade é destruída a marretadas 
como o muro construído tijolo por tijolo no Engenhão
para ser então reconstruída sobre a dúvida
os pensamentos derretendo ao som de Dark Side of the Moon
aos 17
numa sala vazia, encostada sobre a parede branca
o corpo escorregando
aos 18
noutra sala, deitada no chão
hipotizada pelas luzes neon
que brilham formando padrões no teto
o seu rosto me enfeitiçando do outro lado do cômodo
o seu corpo grudado no meu numa cama de solteiro às 7 da manhã
e Kid A tocando na sua vitrola, mas é só
aos 21
que assisto o Thom Yorke ao vivo
e tenho a impressão de que ele é um peixe 
dançando sem ossos e eu um aquário vazio de ar
você está lá naquele cardume em algum lugar
mas a essa altura eu já desisti de te procurar.

domingo, 15 de novembro de 2020

minha barriga é um vaso
um vaso de terra fértil
gestando minhocas

minha barriga é um mar
um mar de lombrigas
dançando famintas

minha barriga é o sono
o sono de raízes
fermentando a fúria

minha barriga é um caldeirão
um caldeirão de bruxa
amalgamando a cura

minha barriga à esquerda 
da minha costela direita

minha barriga à direita
da minha costela esquerda

é um samba de líquidos
equilibrando tormentas

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

De que são feitas as casas  

que moram dentro desta casa? 

Casas de sonho 

de bonecas 

de areia  

escorrendo  

dia após dia 

das arestas 

Iluminada pelo breu do luto,  

trançada de vulto e vácuo 

Escada em espiral, bromélias 

          barcos naufragados 

          nos cantos dos quartos 

O escritório do avô: 

camas 

livros 

fatos revelados 

em câmera lenta 

O próprio avô, fantasma, passeia no espaço: 

de quando em quando ajeita um quadro 

As salas, os sofás, os santos 

a louça azul chinesa – 

camadas geológicas  

impressas na madeira  

(a família, ainda a mesma?) 

Jantares, bolos, rabanadas 

Sobre as mesas, candelabros 

      velas acesas 

      taças de cristal 

O som das musiquinhas do Natal 

O seio costurado da avó 

O silêncio aguado do pai 

Os gestos justos da mãe 

De que são feitas as casas  

que gestam as gerações? 

terça-feira, 20 de outubro de 2020

entranham-me quenturas serelepes,
percorrem-me a carne tesa e flácida nas margens,
tremem-me o tecido musculoso e vibram-me as partes ocultadas
sob os tecidos viscosos, maleáveis, que colam-se às minhas mamas molengas.

a libido salta:
corre e 
pressiona e 
ganha impulso e 
dispara 
vertical
no ar.

gente gente gente
um corpo 
meu deus
um corpo
que não é o meu!
meu deus me dê um corpo
que diga ao meu com gestos:
- você é um outro
me deixe ser outra
nessa noite abafada
sua e sua e pele e 
um pouco de sangue
e geme geme geme 

as bordas dissolvem um corpo que já não é este,
as fronteiras suspendidas no ar são lagartixas de luz 
dançando eufóricas ao som dos tambores que rufam e furam
milhares de cabeças que flutuam no quarto, sem torso nem rosto.

sábado, 17 de outubro de 2020

me inventaria outra tristeza 
se pudesse: um sentimento azul
e leve como uma pluma que cai
das asas distraídas de uma gaivota.

minha tristeza não seria uma pedra perdida 
em seu própio peso no fundo de um lago,
seria a água próxima à superfície,
invadida pelo calor frio dos primeiros raios.

a água, maleável, furaria a pedra.
minha insistência mole venceria sua crosta dura.

não seria a tristeza um animal despossuído,
vagueando pela floresta em seu delírio circular.
 seria um sinal de sã sensibilidade,
seria a possibilidade da beleza.

minha tristeza não seria amarga,
não queimaria a garganta no gesto
de esconder-se, envergonhada.
seria agridoce como as lágrimas:
inclinada às incertezas mais interessantes.

seria um barco a minha tristeza,
seria um porto e um farol.
seria um peixe-espada
pulsando vivo no coração das águas.


o que mata é nascer
com seis com dois com
quinhentos milhões
e quinhentos mil anos
dedos impressos nas rochas
na cal solitária dos muros
na digital futurística
de um passado que
já foi futuro e o sangue
seco no papel o meu
sangue cego surdo
gritante
emaranhado nas letras
fugidias nas vozes
ferozes que me
alcançam no íntimo
úmido num átimo
e mínimo segundo
em que já sou primeira
ou última nessa
rede viva de memórias

sábado, 4 de julho de 2020

para Duda

bailarina da sorte
borboleta de vento
em poupa
papoula
esvoaçante

a vida em
estado de graça
quando nascendo
da sua beleza
dançante

de gestos íntimos
e cheios
engravidados
de luz e afetos

que infinda festa
compartilhar
da sua presença
etérea e forte

chão nos pés
pés no céu
céu na água
fluxo espelho
sol brincante

gorjeios
sinuosos
sussurantes
num jardim
aberto

que sinto
e vejo
quando você
está perto

como um santuário
vasto e natural
o corpo um carnaval

feliz aniversário!

segunda-feira, 22 de junho de 2020

a noite veloz 
como um caramujo
me desvenda:
a casa no corpo
no tempo esta senda

as sombras travessas
tramam futuros
incertos
incêndios
acendem o breu

no sonho, o abrigo
no umbigo, este corte
no fundo, a morte
já é renascer

debaixo do céu-yang 
sigo o sentido 
da terra-yin

in-vento
in-verno
in-verso

palavras 
convexas
em busca 
de nexo

silêncio grávido
milhões de tropeços
e ainda aqui
em corda-bamba
avanço plácida
inteira e torta

mas se a linguagem do avesso
devassa teço amanhãs
madrugada mansa 
atravesso

sem segredos sangro
ventre-tombo-semente

escuto uivos à lua
no escuro úmido
da caverna, onde 
nua e telúrica
me deito
me escorro 
me esca(r)po

um caramujo veloz
como a noite
me desvenda:
no espaço-trêmulo
entre as letras
brilha mais o poema

sexta-feira, 22 de maio de 2020

natureza viva:
abalos sísmicos
o sangue e a seiva
dor de ventre
o som esquecido
das raízes das árvores
escapando-se sempre
o pulsar de um coração
o vasto vento do sul
o plainar de um ser azul
os gestos que emergem 
das beiradas do corpo
os dedos das mãos
de súbito no ar
feito pergunta
a resposta:
não mais que
dedos das mãos
bastam-se.

natureza morta:
pousa na mesa
de um vôo longínquo
plácida e tácita
tangerina
salivando
aguarda
seu destino sombrio
da ponta dos pincéis
à óleo não assobia
é coisa parada
assim
inamovível
sem segredos
sem som:
memória laranja
ao meio-dia.


sexta-feira, 8 de maio de 2020

Mãe,
esta palavra vital,
palavra de carne
e de sangue
umbilical.

Mãe,
palavra de ordem
(não esta ordem
patriarcal):
unifica as poeiras,
organiza o caos.

Mãe,
palavra longitudinal,
de poço profundo,
nesta palavra cabe
todo o espaço do mundo.

Mãe,
porque o céu é azul?
o que significa um segundo?
é das perguntas que nasce
termo tão fecundo.

Mãe,
nas mãos tem vida
e tem morte,
sua pá lavra toda
e qualquer sorte.

Mãe,
é o princípio e o norte;
é o vaso que enche
sem jamais transbordar.

Mãe,
nas bordas do nome
costura o tempo anelar,
nos ecos das sílabas
sibila tramas:
tanta teia a tatear.

Mãe,
nestes fonemas
vociferam
turvas vozes
tantas vezes
abafadas:

Mãe
(esta palavra em fúria),
desata os nós que
não podemos desatar,
transforma o passo
ao por nós passar.

Mãe,
do teu compasso
faço esse ritmo,
pois que no palato
dança este vasto
e íntimo ofício:

o de com palavras
tecer com fios de
som e sentido
até do nada nascer
um poema
pulsando vivo.

terça-feira, 14 de abril de 2020

o tempo 
se alastrou
mole
plácido
no chão do quarto

e no ar poeiril 
o contágio 
dançou
alado

as ilusões mecânicas
de um mundo 
à beira
fluem roucas
até o ralo

e não há máquina
que capture a morte
que nos encara
da janela
da torneira

lúcida
esquiva
traiçoeira

doce
súbita
lado avesso
da vida

escorre pelas mãos
unguento vivo
de sangue
e poesia

se derrama
dengosa
mas não se demora

passa
como tudo
passa

e fica
ponta afiada 
de faca

a um suspiro
do arrepio
do assombro

não nos esqueçamos jamais

pois que é 
do espanto
que se faz um corpo

terça-feira, 31 de março de 2020

atravessaria
a noite
se pudesse
em cima de minha
bicileta azul
no meio da rua
deserta

veloz como o som
arrebatador
das notas de um piano
escorregadio

choraria as dores
de cada ser humano vivo
e o sofrimento da terra
devastada

transbordando
em silenciosa
agonia
os rastros indeléveis
da nossa presença surda

diante da impossibilidade
sou na cama uma bicicleta
sem cabeça
pedalando azul
nosso destino
deserto