a memória do túnel me atravessa: eu lia um livro na janela e pensava tão aviadamente em estar lendo um livro na janela que a lembrança fez-se amarela como a luz do túnel na janela do ônibus eu lia um livro atravessando um túnel e depois outro para ir a faculdade agora é noite e a claridade do túnel me atravessa apenas uma vez aí eu viro a direita com o ônibus, subo a montanha cosme velho e desço até chegar na urca lendo poesia traduzida do polonês com um frio engraçado na barriga pensando estar num ônibus lendo um livro de poesia e olhando em volta e pensando estou aqui me sinto viva
2
ainda não encontrei clara a saga de ulisses continua num ônibus passando por sobre a ponte vendo a ilha com o terceiro olho onde uma mureta recosta nas margens da baía cheia de peixes e barcos e águas claras clara já está lá eu me atrasei a espera do ônibus reconheço o motorista que parece um monje tibetano a ilha mora dentro de mim enquanto não chega ao olhar do ônibus que antevê meu caminho antes de mim estou aqui nesse receptáculo ar condicionado e o monge parou e saltou pra tomar um café o tempo dele é outro criado nas montanhas e clara me espera e atravesso farmácias luminescentes e escrevo pra ver se o frio passa da barriga e chego na praia a ilha se aproxima da vista pirata do monge eu não gosto de me atrasar mas sempre trago um livro pra tornar a espera menos nervosa que assim esqueço de roer as unhas eu tento descobrir a filosofia oriental mas a vida na cidade me faz roer as unhas sem conseguir parar um dia eu chego lá por enquanto quero apenas chegar a clara e seu barquinho de papel de jornal 3
voltei num carro preto sobre o silêncio das rodas no asfalto andei a mesma rua, a mesma curva até chegar em casa pensei em como o outro é espelho que os olhos de bicho noturno de clara denunciavam seu sono sua exaustão mas de como persistiu contando-me de sua viagem pra são francisco e a vontade de afastar-se dos pais eu falei tempos sobre o i ching e coletivo seus putos eu falava de mim ela falava dela e eu não sabia o que havia no entre além dos olhares dos beijos e das baratas e claro da solitária garrafa de cerveja talvez nenhuma de nós esteja pronta para se apaixonar mas estamos as duas descobrindo a solidão do próprio corpo mesmo perto de outro corpo desconhecido abismal e pleno em sua (in)certeza indecifrável de oráculo 4
reservo à podridão os meus cheiros íntimos tenho uma dor no peito e uma tosse que me dizem que desaprendi a respirar clara falou em acupuntura e eu gostei mesmo da ideia
Nenhum comentário:
Postar um comentário