domingo, 4 de fevereiro de 2018

Hoje de manhã tive a impressão de que o tempo está passando muito rápido  
Que o ano se anuncia no primeiro mês como todos os outros 
Que invariavelmente atravessarei ilesa os 21 
Sobreviverei a morte trágica 
Que acomete os heróis  
e astros do rock 
E chegarei no próximo ponto de chegada como quem vence cansado uma corrida. 

Mas sei também que o seu riso anuncia a sutileza desse passar 
Que enquanto chove pela janela do ônibus 
E sonho com enchentes correndo as ruas da cidade 
A felicidade pousa serena em tudo que me circunda. 

Sei que a busca é discreta e está em cada passo 
Que cada passo parece pouco  
O dia atravessando preguiçosamente  
Mas que então  
Como uma revelação 
Nos iluminamos de uma graça súbita 
                         De que estamos crescendo 
                                               Invariavelmente 
Nos transformando por dentro a cada esquina.  

E quando isso acontece 
Infla-se um sorriso no rosto 
Que emana de dentro dos ossos onde mora a criança  
Que ainda está aprendendo viver nesse corpo  
Que  s e   e s t e n d e   e   s e   a l o  n  g  a 
Percorrendo os dias.  

Descobrindo onde repousar o amor que lhe transborda o peito. 
Aprendendo como acolher o choro e a tristeza. 
Vivendo da beleza das pequenas paisagens diárias. 
Lutando contra o cansaço e a expectativa. 

Vislumbrando um banco de praça 
Para que possa admirar os pombos capengas 
E sentir o milagre das coisas em sua absurda simplicidade.
               (A existência plena de si 
                E por isso mesmo vazia) 
Tocando o mistério do mundo num segundo com o olhar  
               Para então voltar a rotina  
               Aos alimentos e a família 

Não sem um brilho de alguma descoberta 
Que se esquece como um sonho de que não conseguimos lembrar. 

inspirado em Saint-John Perse

Amei um cavalo – quem era?  matando sua sede num lago manso reflexivo das nuvens para além.
A pele brilhava-lhe feito a lua sob o lago luz, reluzindo-lhe a riqueza prateada das transpirações. 
Manto sereno e milenar de reis remotos, reinava na ruína do mato recuperado, só  a namorar o lago manso, e a quietude.  
Amei um cavalo  era eu  e o lago manso era ti, ou era eu o lago manso?  







sábado, 3 de fevereiro de 2018

Cordeiro de Deus,
que tirais o pecado do mundo:
Tens tesão sob a pele espessa e suja
Debaixo de tua inocência e candura
Pois dormem ensanguentados filhotes
No leito do teu útero avermelhado
Esperando para nascer de novo.

Cordeiro de Deus,
que botaste o pecado no mundo:
Tende piedade de nós
Moribundos à procura do prazer
Esquece-te da dor
Põe chifres na tua cabeça
Endurece os cascos que pisam a terra fria.

Cordeiro de Deus,
chora.
O maior pecado é resistir às tentações
Por baixo dessa capa branca
A carne é mole
Percebe-te!

Cordeiro de Deus,
amai os pecados do mundo
como se fossem os teus.
Um fruto maduro é Deus. Deus: o tempo e o espaço: um fruto que nasce, sabe a hora exata de abrir-se, apodrece.
Irremediável Clarice,
        No farfalhar das folhas entre o azul
        Dentro do ventre dos bichinhos
        No silêncio das pedras.
Te dedico estas palavras obscenas
                                                        da vida nua,
Remexidas no meu corpo
Assim como as de Manoel:

O barro grosso e maleável
        que visto pela manhã
desfolhando a pele em camadas secas;

                    O deserto que habita em mim.

Fervuras e Quenturas
        no meu caldeirão
        dão bom caldo;
   
         misturo o instante já
         à capacidade humana de borboletas

E faço uma sopa quente
         que desce a garganta
                                            acariciando a linguagem.

À noite,
               sob as estrelas tremeluzentes,
                           conto uma história ao silêncio,
                                      que, espantado,
   gruda nos cílios como poeira-poesia.

As paredes aguçam o ouvido para o som das águas.

E,
antes de adormecer,
levada pelo riacho,
faço essa oração às coisas
                                           inanimadas.

Pedaços de deus na
                                          irrealidade imediata.