quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Acordo:
O escuro me envolve por todos os lados.

Sinto as solas dos meus pés firmes
na terra fria de um lugar desconhecido.

Meus olhos imprestáveis demoram-se,
acostumando-se ao nada que preenche tudo.

O som do meu coração guia meus passos
em direção a um destino obtuso...

Tenho medo, mas avanço conduzida pela 
carruagem de borboletas que me habita a barriga.

Chamo a coragem pelo nome e ela se agita:

Um fio de puro ouro aparece no breu, 
iluminando parcamente o caminho.

À medida que avanço, me percebo 
percorrendo um velho labirinto.

Se falassem, suas paredes revestidas de hera
contariam histórias de antigos castelos.

No silêncio oculto, um sussurro longínquo
me canta os caminhos do meu pensamento.

Para onde vou, não sei. Confio, porém,
na tenacidade do fio e na delicadeza da voz
que me convocam a seguir meu rumo:

Pois que o caminho é destino
E o destino, desconhecido 
alento no escuro.


segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Um dia...

I.
Um dia me disseram
Já!
Era justo agora
E largo amanhã

II.
Um dia eu quis ser um segredo
Calei tanto que ninguém ouviu
Mas esqueci de esconder as mãos 

Elas me revelaram inteira

III.
Um dia eu rastejei na terra
Não era um soldado
Nem um lagarto

Era um sapo nascido ao contrário 

IV.
Um dia eu fingi ser escritora
Fingi tão bem que até eu acreditei

quarta-feira, 5 de julho de 2023

E pensar que existe
algum lugar
no planeta
agora...

Onde pandas desfrutam o amanhecer

Onde águas são eriçadas pelas asas de um beija flor

Onde um sapo repousa no silêncio úmido de uma pedra

E os bambus balançam ao som do vento,
inventando vozes farfalhantes
que brincam de caçar o sol

E pensar...

Que os bocejos se levantam
espriguiçantes
da minha garganta
anunciando a manhã
de mais uma terça-feira
Os carros,
à distância,
contra a luz
que reflete
a baía,
parecem
formigas
velozes
no formigueiro-
cidade.

As vias
parecem
veias,
por onde
o sangue
maquinal
escorre.

Enquanto avanço,
aos trancos,
nos flancos
de um ônibus,
a baía se estende,
impassível,
tocando
o horizonte.

Intemível,
ela repousa
em um silêncio
que inunda
o barulho
dos carros.

Basta abrir
os ouvidos:
lá estão
os sons
longínquos
das baleias.

Mensagens
subaquáticas
que só
o sonho
decifra.

O sonho:
essa criatura
marinha que
nos invade
o sono
e deixa
seus rastros
ao longo do dia.

segunda-feira, 8 de maio de 2023

Uma luz clara 
entre as nuvens 
anuncia o novo dia
e com ela uma descoberta
ilumina toda a terra:

O perdão é possível.

Não falo de redenção,
de cruz e carrego, 
que isso é assunto 
pra quem crê em pecado.

O perdão é possível 
como uma luz clara
que suaviza a dureza 
dos erros passados...

Erros são sempre aprendizados.

O perdão é possível 
se reconhecemos que 
a vida é experimento,
tentativa e erro,
processo constante de 
autoconhecimento.

É possível o perdão
porque o amor é sempre
uma possibilidade.
Asilo e exílio
de nossa frágil
humanidade.

domingo, 7 de maio de 2023

É estranho 
O extra ninho
A confusão de plumas
Na tentativa do vôo 
O vivo vortex do tempo
Penetrando as entranhas

É estranho
Os rasantes do vento
As metamorfoses 
Silenciosas das vísceras
A memória cortante
Inebriante como o
Líquido dos sonhos

É estranho
O sem tamanho 
Do sentimento quando
Suspensa no ar
Todas as coisas pousadas
Dançam 

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Embalada pelo ritmo melancólico 
de uma música dos anos 10,
inundada num oceano
de papéis de bala,
me sinto, 
por um instante,
uma ilha perdida 
na imensidão 
do quarto.

Engulo água salgada
com gosto de nostalgia:

A solidão da adolescência;
O desejo de ser encontrada
entre coisas perdidas,
coisas quebradas;
Ser vista, ser amada.

O anseio por aceitar
qualquer caco de atenção,
qualquer mensagem 
encriptada
deixada numa página 
de um blog,
esquecida na sua,
na minha boca
selada.

Mas emerjo das profundezas, 
respiro o frescor que me abraça
e me reconheço outra:

Bem acompanhada, 
envolvida por um amor
que me enxerga e me aceita,
que começa bem no centro
do meu corpo amadurecido,
enrugado de lágrimas
doces como cafuné,
mais apreciadas
que balas de café.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

O peso das dores 
nos ombros dos dias
cravado nos músculos
das horas
aflitas 

Das cores, o cinza
crescendo no céu
da boca
até que a saliva
vire lágrima derretida

Os olhos: deserto
antevendo tempestade
acumulando oceanos
no dessalgar da idade

Irrompe a chuva
A água despenca
violenta
Lava as mágoas
cicatrizadas na pele
do tempo

O vento varre
as memórias turvas
O ventre esfria e dobra -
mesmo movimento 
quando ri ou chora

O duro das dores
amolece no dissolver 
das mágoas
E os dias amargos 
se esquecem no cair 
das horas


segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Amanhece.
O cheiro de jasmin
roçando as águas do rio
levanta a aurora em mim.

Nasce no limiar da pele um arrepio
que alarga a claridade calma,
ao primeiro sinal dos assobios
rompendo a casca da manhã.

O mundo me respira, eu viro brisa,
vago crua pelos galhos, traço atalhos,
lanço os dados do dia que desponta.

Fome e fibra, o corpo voluptuoso da vida
devora os pensamentos arredios,
a carne das palavras cravadas no silêncio.

O som das crianças me carrega para onde quero ir...
Escuto a infância me chamar na crina da poesia
e desço os vales das primeiras horas
com a leveza do não saber que confia.