quarta-feira, 18 de novembro de 2020

aos 18
descubro Radiohead, mas ao ouvir Creep
é como se eu fosse catapultada de volta
aos 13
aquele sofrimento brotando alienígena do meu íntimo
a primeira menstruação manchando a infância
eu sou um monstro, menos, eu sou um feto escroto
é o que escrevo no meu diário
aos 14
quando assito ao show do Roger Waters
e minha percepção de realidade é destruída a marretadas 
como o muro construído tijolo por tijolo no Engenhão
para ser então reconstruída sobre a dúvida
os pensamentos derretendo ao som de Dark Side of the Moon
aos 17
numa sala vazia, encostada sobre a parede branca
o corpo escorregando
aos 18
noutra sala, deitada no chão
hipotizada pelas luzes neon
que brilham formando padrões no teto
o seu rosto me enfeitiçando do outro lado do cômodo
o seu corpo grudado no meu numa cama de solteiro às 7 da manhã
e Kid A tocando na sua vitrola, mas é só
aos 21
que assisto o Thom Yorke ao vivo
e tenho a impressão de que ele é um peixe 
dançando sem ossos e eu um aquário vazio de ar
você está lá naquele cardume em algum lugar
mas a essa altura eu já desisti de te procurar.

domingo, 15 de novembro de 2020

minha barriga é um vaso
um vaso de terra fértil
gestando minhocas

minha barriga é um mar
um mar de lombrigas
dançando famintas

minha barriga é o sono
o sono de raízes
fermentando a fúria

minha barriga é um caldeirão
um caldeirão de bruxa
amalgamando a cura

minha barriga à esquerda 
da minha costela direita

minha barriga à direita
da minha costela esquerda

é um samba de líquidos
equilibrando tormentas

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

De que são feitas as casas  

que moram dentro desta casa? 

Casas de sonho 

de bonecas 

de areia  

escorrendo  

dia após dia 

das arestas 

Iluminada pelo breu do luto,  

trançada de vulto e vácuo 

Escada em espiral, bromélias 

          barcos naufragados 

          nos cantos dos quartos 

O escritório do avô: 

camas 

livros 

fatos revelados 

em câmera lenta 

O próprio avô, fantasma, passeia no espaço: 

de quando em quando ajeita um quadro 

As salas, os sofás, os santos 

a louça azul chinesa – 

camadas geológicas  

impressas na madeira  

(a família, ainda a mesma?) 

Jantares, bolos, rabanadas 

Sobre as mesas, candelabros 

      velas acesas 

      taças de cristal 

O som das musiquinhas do Natal 

O seio costurado da avó 

O silêncio aguado do pai 

Os gestos justos da mãe 

De que são feitas as casas  

que gestam as gerações?