quarta-feira, 25 de abril de 2018

Se
eu pudesse
ver meu futuro
Um
recorte
uma cena qualquer
num filme que assistimos
distraidamente
Uma mesa de jantar
Pessoas & Sabores
O cotidiano elementar
que dá liga à vida
Uma aura de importância
no despropósito
ou numa risada
numa limonada
na partilha do
dia-
a-
dia

Se eu pudesse
En-
xergar
através
dessa
cortina
Talvez
(só talvez)
eu me sentisse mais tranquila
agora -
a promessa de felicidade
se anuncia
ela fura meu polegar
todos os dias

; mas sangra

chupo o dedo
como uma criança
que ainda não superou
o seio materno
a vontade do eterno
está tatuada na minha pele
e as cicatrizes que carrego
criam um mapa
para me encontrar em mim

Se eu
pudesse
prever
a dor
que ainda não senti

Se isso fosse prevenir
a dor que
vou sentir

Se eu conhecesse a dor
do meu futuro
e suas alegrias
estampadas na pele
Talvez eu me sentisse mais preparada
para acordar amanhã
na cama onde tenho dormido
há pouco mais de vinte anos
Onde minha mãe vinha
me dar boa noite
antes de me levantar
na manhã seguinte
para ir à escola
E onde meu pai me cobria
e trazia o leite que
eu precisava para dormir
No mesmo quarto
tantas vezes rearrumado
Aqui cresci tantas vezes -
toda vez que morria
e o quarto mudava de cor
e de cara
para que renascêssemos juntos
na mesma pele
e na mesma casa

eu tenho ânsia de escrever filmes
é que tudo afaga e fura
a minha pele
meu órgão mais sensível do corpo
é ela que registra as imagens que vejo
(não o olho)
é ela que imprime na casa
a minha forma
e que faz a casa
se imprimir em mim
quando toco piano
e os degraus da escada
quando tropeço na escada
quando giro a maçaneta
é assim que se fazem os filmes

Mas
se eu pudesse
ver o filme da minha vida
nem que um recorte
daqui a uns dez anos
uma cena banal
uma pista
Talvez
não fosse ter tanta graça
acordar com o dedo sangrando
e chupá-lo
ainda carente de mãe
ou bater a canela no degrau

Talvez uma pista
me roube o gosto
de viver a formatura
de cada cicatriz
quando abre
e fecha
mudando de cor
em mim